Minha irmã mais velha levou um tombo da vida, há alguns anos, daqueles que ferem, tiram, transformam tudo. Sua vida mudou completamente, porque sua lucidez sofreu demais e seu físico também. Ela ainda tem dois diplomas universitários, um filho maravilhoso, um cabelo lindo. Ela ainda tem lembranças do passado, as unhas compridas, tem os cinco irmãos. Mas não pode mais fazer o que quiser, nem ficar sozinha.
Quando eu era criança, ela me levava para nadar no clube enquanto tomava sol – era vaidosa, de uma beleza estonteante. Lembro-me dela pulando corda, fazendo bicicleta no quarto, cuidando-se. Ela também me levava ao cinema e a shows de bandas infantis e eu, medroso que era, acabava chorando e tinha que ser levado de volta para casa. Ela não desistia. Não desistia de mim. Várias vezes, enquanto eu assistia a desenhos na televisão, ela me preparava pão com maionese. Quando eu dormia na casa dela, depois que se casou, ela me preparava pão com maionese. Minha irmã ajudou minha mãe a cuidar de mim.
Havia um exemplar de “Os Lusíadas”, do Camões, que ela ganhara como prêmio de melhor aluna na quinta série do ginásio. Havia fantasias de carnaval que ela usava, guardadas no maleiro. Lembro-me dela estudando, sempre, quando cursava Engenharia Civil. Vestia-se bem, exalava perfume e o lombo na cerveja, que preparava no Natal, era divino. Participava ativamente das atividades da Igreja que frequentava, doava-se, de graça.
Sempre trabalhou e todo mundo gostava dela, de suas risadas, de seu jeito de ser. Geniosa, tendo sido a primeira filha, teve que desbravar mares nuca dantes navegados, muitas vezes enfrentando a autoridade de meu pai e de minha mãe, em busca de seus sonhos. Gostava de música e de filmes e, por isso, às vezes conversávamos sobre essas coisas. Gosto de David Bowie por sua causa. Também me lembro de que ela gostava muito da língua inglesa e de números, era ótima com contas – chegou até a dar aulas de Matemática e afins, em casa e nas escolas.
As tragédias fazem isso com a gente: obrigam-nos a reter coisas boas dentro do coração, para que não estacionemos demoradamente na tristeza. A gente tem que tentar vislumbrar algo de positivo em meio a essas tempestades avassaladoras, a gente tem que aprender com tudo aquilo, ou a vida empaca e não sai do lugar. E parar na dor é uma das piores coisas que poderemos nos permitir, porque temos que continuar, ainda que doa, ainda que pese, que escureça. É preciso seguir.
Fatalidades também nos ensinam a valorizar o que realmente importa, forçando-nos a parar de perder tempo com miudezas, com futilidades, com aquilo que não guardaremos dentro de nós. Hoje eu não me abalo tanto quando pequenos incidentes acontecem, quando alguém me aborrece, quando fazem fofoca, ou tentam me diminuir. O tempo da gente é precioso demais para perdê-lo com coisas tontas e com gente que não merece.
Passei a apreciar o que tenho, da melhor forma. Olho para o céu enquanto dirijo de um trabalho para o outro e ali enxergo um presente. Sorrio quando recebo um bom dia virtual. Abraço minha gata e minha cachorrinha enquanto estão comigo. Sempre que posso, digo aos meus queridos que os amo. “Amo você”, “amo vocês”, faz bem para quem ouve e para quem diz. Descobri que nenhum problema pode ser mais forte do que nossa vontade de ser feliz e que saúde e lucidez mental são bênçãos.
A gente deveria aprender essas coisas sem ter que sofrer, mas, infelizmente, muitos de nós somente passamos a valorizar os pequenos instantes da vida quando perdemos, quando caímos e doemos fundo na alma. Minha irmã está me ensinando, em sua vida de luta íntima diária, a ser melhor, mais gente, menos besta. Ela é uma lição que a vida me faz aprender, ainda que dolorosamente. Ela é uma guerreira, porque me obriga, ali sentadinha na cadeira de rodas, nem me enxergando direito, a ser forte. A ser grato.
Eu te amo, Maiza.
As pessoas nos tratam de acordo com o que elas são.